quarta-feira, 21 de novembro de 2012

47º Capítulo: O início do fim




“Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?” (Fernando Pessoa)


O mar, quer em maré alta ou baixa, quer no seu estado mais calmo ou mais revoltado, é algo mais do que um meio onde habitam várias espécies, é mais do que um enorme conjunto de moléculas que mais tarde nos matarão a cede. Para mim, o mar é vida, é a oportunidade de ter o abraço de uma mãe nos momentos mais difíceis sem ela estar presente, de sentir o toque de umas mãos pequeninas com a pele muito macia e o delicioso cheiro a bebé. É o detentor das respostas às perguntas que não formulava.

A relva estava fria, húmida até, o rio, prestes a unir as suas águas às do grande oceano, estava calmo, ao contrário de na ponte, ao longe, onde a vida corria com alguma pressa. O sol, até então tímido, começava a aparecer por detrás das grandes nuvens brancas. Era quente. Eu gostava do sol, trazia calor, brilho, luz, cor e, acima de tudo, fazia as pessoas sorrir.

Acabei por me deitar sobre a verde relva como já não fazia há muito tempo. Momentos como este faziam-me recordar o Alentejo, com os seus campos, uns dourados outros verdes. Conseguia pensar em tudo e em nada, conseguia esquecer todos os problemas e preocupações, nem que fosse apenas por momentos. Mas claro, voltavam sempre para me preencherem o pensamento, um deles até tinha um rosto, um cheiro, um nome: Ruben.

Suspirei.

Tinha de fazer alguma coisa. Mas o quê?

Sentia a falta dele, as coisas mais simples, da sua essência, da sua presença, do seu sorriso de criança traquina.

Podia ligar-lhe, assim ouvia a sua voz, sem discussões, podia voltar a casa e agarrar-me à sua camisola que permanecia juntos às minhas, do tempo em que dormia em minha casa uma ou outra noite, e que ainda tinha o seu cheiro. Podia, também, reunir todas as fotografias que tínhamos tirado durante a nossa curta relação, mas que já eram as suficientes para não poderem ser contadas pelos dedos. Podia… mas o que queria mesmo era estar com ele.

Mas com que cara lhe iria pedir para jantar comigo, ou lanchar, ou ir ao cinema, ou qualquer que fosse o programa, se passava a vida a fugir dele? Quando estava sozinha e pensava nos meus atos, sentia-me uma autêntica adolescente, onde se foge para não levar com as consequências. Eu não era assim. Mas, por agora, seria melhor ficar quieta? Não, definitivamente não!

Primi o botão que me permitiu voltar à realidade. Já tinha passado algum tempo desde que ali chegara, tinha as costas molhadas e estava a ficar com frio. O sol ainda não aquecia tanto assim.

Já em casa, enchi a banheira com água bem quente, tal como fazia nos dias mais frios de inverno. Como sempre, liguei o Ipod às suas colunas e, enquanto olhava para o nada, ouvia aquelas músicas que ocupavam espaço na memória e que só serviam para estes momentos.

- “A gente não precisa tá colado pra tá junto, os nossos corpos se conversam por horas e horas, sem palavras tão dizendo a todo instante um pro outro, o quanto se adoram, eu não preciso te olhar pra te ter em meu mundo…” – Cantava quando o telemóvel, que permanecia perto de mim, começou a emitir luz e o som que assinalava a receção de uma nova mensagem de texto:


De: Maria
O Ruben está no Colombo com o Javi e o Rodrigo. Estão no Bowling. Talvez queiras vir até cá.


Olhei para o relógio. Na verdade, era possível que lá estivessem, se não tivessem nada melhor para fazer, o treino já tinha terminado. Tinha de ir e, desta vez, nem pensei duas vezes. A água, ainda quente, ficou para trás, sequei o cabelo na tentativa de domar os largos caracóis e apliquei um pouco de maquilhagem. Quanto à roupa, bem, foi um pouco mais complicado, queria estar “apresentável” para Ruben, mas não demasiado. Com tanta asneira que tinha feito era melhor acumular alguns pontos onde podia, optei então por levar algo simples.




Cheguei ao Colombo cerca de uma hora depois do alerta de Maria, ao qual não lhe tinha dado resposta. Assim que estacionei o carro liguei-lhe:

- Sim? – Atendeu Maria com um tom muito divertido. Se havia alguém que se conseguia rir desta história toda era ela.

- Diz-me que ele ainda está no salão de Bowling! – Ouvi a gargalhada de Maria do outro lado, mas ignorei.

- Ah, não sei não. Demoraste muito tempo, talvez já se tenha ido embora…

- Maria, vá lá, se ele fosse embora tu avisavas-me. Ele ainda lá está, não está?

- Sim, há dois minutos ainda lá estava. Mas caso fujas novamente, nós estamos numa das lojas de criança. Viemos com a Sofia.

- Isso não vai acontecer.

- Não vai? Não vens ter connosco? Mas que…

- Não é nada disso. Eu não vou fugir.

- Ahn, ahn. Vai lá antes que ele vá embora. Mas se quiseres ganhar um jogo é hoje o dia, ele está a jogar mal pra caramba.

Lancei um olhar de soslaio para o telemóvel e voltei a guardá-lo na mala.

«Eu não vou fugir!»

Acelerei o passo, o máximo que consegui. Entrei de repente no salão, e com rapidez semelhante os meus olhos varreram o espaço à procura de Ruben. E lá estava ele, na pista do costume, acompanhado pelos seus colegas. Ruben estava um pouco mais à frente, com a bola na mão e em posição de lançamento. A bola rolou pela pista, mas apenas conseguiu derrubar dois pinos antes de entrar na zona escura. Cedeu o lugar a Rodrigo, não reclamou pela sua má prestação e limitou-se a ver o jogo dos seus companheiros. Este não era, definitivamente, o “meu” Ruben. Tenho a certeza de que se a mãe dele o visse assim iria dizer que a culpa era minha, que não era boa companhia para o filho, tal como todas as mães diriam.

Pedi os sapatos adequados para andar pela zona dos jogadores e caminhei até Ruben, colocando-me atrás de si.

- Podemos falar? – Sussurrei-lhe ao ouvido. Rapidamente Ruben deu meia volta de modo a ficar voltado para mim, e na cara mostrava-se surpreendido. Ato este que surpreendeu Javi e Rodrigo, embora mais Javi, embora ambos acabassem por olhar para nós.

- Madalena, ¡hola! ¿Qué haces aquí? – Perguntou Javi cumprimentando-me com dois beijos na face. Antes que eu ou Ruben pudéssemos responder, Rodrigo interferiu.

- ¡Dios! ¿Quien es esta chica?

- No es nadie. – Respondeu Javi.

- Bien, no me parece que no sea nadie… - Disse apreciando-me.

- Es… una prima de Ruben. – Mentiu Javi.

- ¿Prima? Ruben, ¡tienes una prima muy guapa! Pero… ella no es tu prima, ¿verdad?

- Rodrigo, ¡cállate! – Ordenou Javi com um tom de voz autoritário.

- O que fazes aqui, Madalena? – Perguntou Ruben finalmente.

- Precisamos de falar. Aliás, eu preciso de falar contigo.

- Não falámos já? Não disseste tudo o que tinhas a dizer?

- Não, Ruben. Só disse o que devia dizer. O que não é bem o que te quero realmente dizer.

- Então o que me queres realmente dizer? – Javi e Rodrigo entretanto já tinham regressado ao jogo, mas estavam demasiado perto, certamente conseguiriam ouvir tudo o que dizíamos. E, nesse aspeto, gostava muito da minha privacidade.

- Vem comigo, por favor.

Ruben assentiu. Informou os colegas que regressaria em breve e iniciámos uma caminhada, lado a lado, por entre a multidão. Caminhámos até à zona da restauração onde Ruben, subitamente, parou.

- Talvez devêssemos ir para outro sítio… - Sugeri.

- Não, aqui está bom. É o suficiente para dizeres de uma vez por todas o que tens a dizer.

- Então, vai ser assim?

- Assim como?

- Assim. Não vais voltar a ser o mesmo Ruben comigo?

- Esperas que sejas o mesmo contigo quando tu me rejeitas, depois foges, depois regressas, e voltas a rejeitar-me?

- Pronto, tudo bem. Eu não vim aqui para ouvir acusações. – Respirei fundo e prossegui. – É verdade que tenho sido… difícil, mas vim aqui para te dizer que preciso de estar contigo, que quero estar contigo. Ruben, eu amo-te!

domingo, 14 de outubro de 2012

46º Capítulo: Uma história diferente


 “O amor é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar.” (Carlos Drummond de Andrade)



 A melhor parte da distância? O reencontro. E tal como eu, Ruben também o sabia. Os nossos olhares diziam tudo o que ficara por dizer ao longo de vários dias, eram o espelho da alma e também do coração que, naquele momento, cada batimento assemelhava-se a uma bofetada, não doía, era uma das melhores sensações do mundo. O meu estômago libertava borboletas, em grande quantidade, nunca sentira nada assim, tão forte, em qualquer outro momento da minha vida. O que se pode chamar a toda esta telepatia, a todo o sentimento que se havia apoderado de nós? Amor. Tudo aquilo que fortemente nos unia chamava-se amor.
 
 Todo o meu corpo, o meu ser, estava em fogo por voltar a sentir as suas formas, sentir o seu cheiro, a sua voz e o seu riso que ecoava dentro da minha cabeça. O meu corpo desejava o seu, a minha alma desejava a sua, podia admitir isso, mas, por agora, tê-lo nos meus braços, embora não fosse suficiente, era tudo o que podia permitir. Pousei as mãos no seu peito, conseguir sentir os batimentos do seu coração, enquanto os seus braços rodeavam a minha cintura.
 Talvez tenham passado segundos, talvez minutos. Nenhuma palavra fora pronunciada até então, facto que Ruben invalidou.
 - Por quê? – A voz de Ruben mostrava a desilusão, a mágoa que sentia em relação a mim. Era tudo o que eu não queria, e saber que Ruben, como era de esperar, estava magoado comigo magoava-me. Naquele momento, sentia que não passava de um animal muito pequenino, que se visse um buraco escondia-se muito depressa. Mas não vi nenhum, limitei-me a baixar a cabeça para não ter de o encarar, porque neste momento sentia vergonha. – Por que é que tinhas de estragar tudo, Madalena? – Afastámo-nos, as minhas mãos já não permaneciam no seu peito, nem os seus braços me rodeavam. Pensei que fosse mais doloroso quando estava sozinha, mas agora, frente a Ruben, era impossível não me sentir a pior pessoa do mundo. E, com este sentimento, pequenas lágrimas teimavam em formar-se. Graças à diferença de alturas, Ruben não as conseguiria ver.
 - Desculpa. Eu… eu não devia ter vindo até aqui. – Tímidos soluços acompanhavam as lágrimas que, agora, corriam com mais intensidade. Talvez se fosse embora agora ele não percebesse. Dei meia volta sem o olhar e, decidida a dar o primeiro passo, Ruben impediu qualquer movimento meu. Talvez percebera que eu chorava, pois abraçou-me novamente, reconfortando-me como só ele sabia fazer. – Desculpa Ruben, eu não te queria fazer sofrer. Eu nunca me devia ter aproximado de ti, nunca te devia ter conhecido.
 - Estás arrependida? Estás arrependida de tudo o que passámos juntos?
 - Não, não estou.
 - Não estás? Tudo o que dizes faz-me acreditar precisamente no contrário.
 - Eu não estou arrependida. De nada! Mas não quero achar isto certo, eu não devia achar isto certo.
 - Então, por que me deixaste? Por quê, Madalena? Com um telefonema! Sabes como me senti quando ouvi que já não querias estar comigo? Quando poucas horas antes dizias que me amavas. Nem foste capaz de falar comigo. Tu não tinhas o direito de acabar comigo desta forma! – O sofrimento de Ruben estava-me a deixar louca, estava-me a matar por dentro.
 - Ruben, eu…
 - Como pudeste ser tão cobarde, Madalena?
 Senti que o meu limite estava prestes a ser atingido. Quantas acusações somos capazes de suportar, mesmo sabendo que os caminhos a seguir não são por nós destinados? Quantos pedidos de desculpas seriam ignorados até que as mesmas dolorosas acusações terminassem? E as feridas, quantas feridas seriam abertas? Seria eu assim tão má pessoa?
 - Desculpa Ruben, já te pedi mil desculpas. Por favor, para!
 - És fraca, Madalena, és uma cobar…
 - Ruben, chega! – Gritei, interrompendo-o. – Estás a tentar magoar-me e está a resultar! Mas eu não vou admitir que me insultes, não vou admitir que me julgues! Nós não podíamos continuar juntos. E sabes por quê? Já paraste um bocado para pensar nos meus motivos? Porque sou um cobarde, sim, tens razão, porque não fui capaz de fazer frente ao meu pai, porque ele é meu pai e eu amo-o! E acima de tudo, porque amo o meu irmão. Sim, Ruben, eu sou uma cobarde! – Sentia a minha cara a arder, os olhos doíam-me com a fúria.
 Ruben nada dissera, abriu a porta do lado do condutor mas não chegou a entrar, fechando-a com demasiada força. Os seus lábios húmidos e doces entraram em contacto com os meus. Senti um arrepio que percorreu todo o meu corpo, por momentos, fiquei sem reação, já tinha perdido todas as esperanças de o voltar a sentir desta forma. A minha cabeça ficara barulhenta com a sua voz, com o seu sorriso, com ele por completo, senti uma leveza, talvez se não sentisse os lábios de Ruben contra os meus diria que já não estaria no meu próprio corpo. Sabia que tinha de o afastar, só faltava a coragem para o fazer. Não queria fugir novamente, naquele momento, era a pior palavra que podia ouvir ou pensar. Mas não me podia render àquela vontade de o ter.
 Fui eu que me afastei vários centímetros, fui eu que nos separei novamente. Estremecia só de pensar que tinha de ir embora, não porque queria, mas porque era uma ordem à qual tinha de obedecer. Talvez eu conseguisse cair num sono profundo, onde, com o tempo, a sua imagem se desvanecesse da minha mente, talvez um dia fosse possível passar por ele e não sentir nada. Talvez, mas eu sabia que estava errada, um amor tão forte não se esquece, talvez Ruben o conseguisse fazer, mas eu não, era forte, embora não o suficiente. Tinha de gravar a sua imagem na minha memória, o seu cabelo castanho que dançava ao sabor do vento, os seus olhos, o seu corpo esbelta, a sua voz, o seu sorriso, a sua gargalhada. Em tempos, tudo isto me pertencera, agora já não.
 - Não me deixes. – Ruben sussurrava ao meu ouvido. O meu coração estava pequeno, bem pequenino, a situação de “animal pequenino” voltara a crescer, incontrolavelmente, e por breves momentos, ouvi um grito dentro de mim, um grito de desespero. – Amor, não me deixes. – Tudo o que consegui foi abanar a cabeça, da esquerda para a direita, várias vezes. – Nós podemos ficar juntos, o teu pai está longe, ele não iria saber.
 - Isso não está certo. Por quanto tempo teria eu de te esconder? Eu não quero isso, não te posso pedir isso.
 - Era só até…
 - Até quando? Até o meu pai esquecer que tu existes? Até ele mudar de ideias? Isso não vai acontecer. – Ruben estava cabisbaixo e eu odiava vê-lo assim. – Ruben, amo-te, está bem? Eu amo-te.
 - Então luta por esse amor. Prova-me que ele existe e que não são só palavras!
 - Não posso! Mas nunca duvides do que eu sinto por ti, porque é verdadeiro!
 - E agora? Vais-te embora, outra vez? – A mágoa na voz de Ruben era quase palpável. Talvez fosse melhor assim.
 - Eu vou sempre estar aqui, só não podemos estar juntos.
 O momento tinha chegado. Antes de entrar num choro compulsivo, que os batimentos do meu coração começavam a denunciar, tinha de lhe virar as costas, enquanto as lágrimas ainda caiam compassadamente. Estremecia só de pensar que não haveria um último beijo, um último toque, que deixava para trás o homem da minha vida, mais uma vez. Caminhei o mais depressa possível na direção contrária à sua presença, voltei-me várias vezes para trás com o objetivo de o ver abalar, mas Ruben continuava para do no mesmo sítio, insistia em ver-me fugir. 

 Apenas o rio permanecia comigo neste momento, o que achava certo agora não fazia sentido, sentia-me vazia, com um enorme buraco no peito. Fisicamente, Ruben poderia não estar longe nem perto, simplesmente não estava, mas no meu coração, a história era bem diferente.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Leitoras :)

 Olá queridas leitoras, quero pedir-vos desculpa pelo tempo que estou a demorar a publicar o próximo capítulo, mas tinha toda a história guardada numa pen, e surpresa, surpresa, perdi-a. Nestes últimos dias tenho tentado escrever algo parecido com o capítulo que estava escrito, por isso peço-vos mais uns dias. Prometo que vai a caminho.
 Obrigada por não desistirem, são as melhores leitoras do mundo!

Jéssica

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

45º Capítulo: O Reencontro



“Não chores nas despedidas, pois elas constituem formalidades obrigatórias para que se possa viver uma das mais singulares emoções da vida: O Reencontro.” (Richard Bach)


Nada que umas boas horas de sono não resolvessem. Bem, não resolveram nada, quando acordei ainda não tinha Ruben ao meu lado, nem um bilhete em cima da almofada, escrito à pressa, a informar-me que tinha ido à padaria buscar pão quente para o nosso pequeno-almoço, tudo naquele quarto comprovava a sua ausência, mas pelo menos, essas horas ausente do mundo serviram para arranjar força para voltar às aulas.

 Com o corpo dorido, devido às demasiadas horas que tinha passado deitada, acordei antes que o despertador tocasse, num outro dia isto ter-me-ia irritado profundamente, mas desta vez tinha acordado completamente desperta. Tinha muito tempo até que fossem horas de sair de casa. Tomei um duche algo demorado, penteei demasiado os meus largos caracóis, apliquei uma maquilhagem que me desse um aspeto natural, vesti mais de três conjuntos de roupa diferentes, acabando por escolher o primeiro que tinha vestido. Ainda tive tempo para preparar o meu pequeno-almoço com calma, o qual ficou quase intacto em cima da bancada da cozinha. Reuni os meus pertences na mala e olhei para o relógio, ainda continuava a faltar muito tempo. É incompreensível o facto de o tempo passar a voar quando queremos que ele abrande um pouco e, quando queremos que ele avance mais rápido, cada segundo parece uma hora.

 Suspirei. Com sorte já apanhava algum trânsito nas ruas de Lisboa, o que me fazia desperdiçar uns minutos do demasiado tempo de que ainda dispunha. Não, para minha desilusão, afinal não estava assim tanta gente a ocupar as estradas. Dei por mim a pensar que estava maluca, eu não gostava de trânsito, agora dava por mim a desejá-lo, odiava acordar cedo, nesta manhã nem me tinha importado. A casa de Maria ficava quase de caminho para a faculdade, iria esperar por ela, e nem era habitual ir buscar as minhas amigas a casa quando elas tinham carro próprio.

 Por vezes, as nossas intenções não mostram as consequências. A casa de Maria ficava de caminho para a faculdade, mas também ficava relativamente próxima da zona onde Ruben residia. Não me apercebera disso, até que um carro cinzento escuro, que era capaz de conhecer em qualquer lado, com a ajuda da matricula que rapidamente memorizara, prendeu o meu olhar. Tive medo de levantar um pouco o olhar, apenas o suficiente para conseguir ver o seu interior. Tal como conhecia o carro, também conhecia o condutor. Qual era a probabilidade de o encontrar? Quase nula, certo? Era demasiado cedo para ir para o centro de treinos. E eu que não acreditava em coincidências.

 Talvez, travar de repente não tenha sido a ideia mais inteligente que já tive, o som dos travões chamaram demasiado à atenção. Talvez até possa dizer que foi uma ação involuntária. Mas não importa, pelo menos, no momento não me importei com isso, há muito tempo que não via Ruben cara-a-cara, também há muito tempo que os nossos olhares não se cruzavam. Tempo que começou novamente a contar do zero. A minha atitude tinha chamado à atenção de Ruben, os nossos olhares cruzaram-se por segundos, tempo suficiente para recordar o seu olhar de menino, o brilho dos seus olhos que pensava que tinha esquecido e, quando ele já se encontrava atrás de mim, percebi que, de cabeça baixa, eu estava a sorrir. Tinha saudades dele. Sabia que o amava, não só sabia como o sentia, e também sentia e sabia que era correspondida. Como poderia dizer que era o destino que nos tinha afastado se, o nosso próprio destino, somos nós que o construímos?

 O som de algo a bater no vidro da porta do passageiro chamou-me a atenção e fez-me despertar do transe em que me encontrava. Vi Maria, dobrada, a espreitar para o interior, um pouco atrapalhada em segurar a mala e o seu dossier, e ainda em continuar a bater no vidro com o dedo indicador para a deixasse entrar, devido à posição em que se encontrava.

 - Vais-me deixar entrar? – Perguntou, ainda do lado de fora. Destranquei automaticamente as portas e Maria entrou. Depois de se sentar e se acomodar, olhou-me com uma expressão desconfiada. – Passa-se alguma coisa?

 - Hum? Não. – Sorri-lhe.

 - Então o que estás aqui a fazer? Tu ainda eras para estar em casa. – Olhou para o relógio para confirmar as horas, pois estranhou a minha presença. Tinha saído da cama mais cedo que o habitual.

 - Acordei cedo e decidi vir-te buscar. Fica de caminho.

 - Hum, hum. Madalena, eu tenho carro, sabias? O que é que se passou? – Voltou a perguntar, desta vez a olhar-me nos olhos, para que não lhe pudesse mentir.

 - Acordei cedo. Sem sono… Odeio quando o despertador não toca antes de eu acordar.

 - Madalena, eu não estava a falar disso. – Interrompeu-me. O seu dedo indicador, que há segundos batera no vidro, agora estava apontado em direção a mim, desenhando pequenos círculos. – A tua cara… O que se passa?

 - Vi o Ruben. – Disse prendendo o olhar no volante, depois encarei-a. Os seus lábios afastaram-me, os seus olhos ficaram um pouco maiores. Maria estava surpreendida, mas depressa se recompôs.

 - Viste? Quando? Ontem? Ele foi à tua casa? Falaste com ele? Como é que estás?

 - Não Maria, eu… Eu vi-o há minutos. – Uniu as sobrancelhas tentando pensar onde poderia eu ter visto Ruben. – Ele passou por aqui. – Esclareci-a.

 - Passou por aqui? Mas que raio estava ele aqui a fazer? A mãe dele vive aqui, ou algum amigo dele?

 - Não, ele mora aqui perto.

 - Mora aqui perto? O David Luiz já esteve perto da minha casa e eu não o vi? E tu não me dizias nada? Madalena… Bem, não interessa. – Disse movendo a cabeça de um lado para o outro, repetidamente, como se afastasse um pensamento. – Ele viu-te?

 - Viu. Quer dizer, acho que viu. Pode não me ter reconhecido, mas… - Disse ainda a sorrir. Para mim, o famoso David Luiz, já era uma pessoa “normal”, um amigo do Ruben, e não o ídolo das minhas melhores amigas. Tinha-me esquecido de todas as conspirações e suposições que fizemos sobre ele, do quanto me ria enquanto elas o idolatravam.

 - E não te disse nada? – Respondi-lhe apenas com um aceno de cabeça. Ajeitou a viseira de modo a conseguir ver-se no espelho interior que esta continha, verificou a sua aparência e lançou um rápido olhar para a retaguarda do carro. – Está na hora de ir.



***



 Para mim, os melhores professores eram aqueles que nos sabiam cativar, que nos mostravam que estar ali, horas e horas, não era uma completa perda de tempo. O tempo, ao contrário do que tinha acontecido horas antes, passara a correr. O professor deu a aula por terminada disponibilizando-se, como sempre, a esclarecer duvidas. Coloquei-me na fila, afinal tinha faltado uma semana inteira às aulas.

 - Professor, preciso que me explique a velocidade de hemossedimentação. – Anunciei-lhe assim que chegou a minha vez.

 - Muito bem. Desde já, bons olhos a vejam, já não aparecia há algum tempo. – Desculpei-me com um sorriso. – Por favor, diga-me que sabe o que são eritrócitos.

 - Sei, professor. – Assegurei.

 - Muito bem. Já vi de tudo. Então, resumidamente, a velocidade de hemossedimentação não é nada mais, nada menos, do que um teste que determina a taxa na qual os eritrócitos se precipitam num período de uma hora. Tem também como objetivo monitorar doenças inflamatórias, ou malignas, e também auxilia na determinação e no diagnóstico de doenças ocultas. Talvez um dos seus colegas a consiga ajudar, e caso nasça alguma dúvida, pode sempre esclarecê-la comigo.

 - Obrigada, professor.

 Virei costas ao meu dever. Uma manhã inteira enfiada dentro de um auditório era algo que provocava algumas dores musculares, e também alguma fome. Maria, junto de Joana e Sofia, esperava por mim. Já há algum tempo que não falava com Joana e Sofia, o que me fazia sentir um pouco culpada.

 - O que me dizem em irmos almoçar? Já estou com fome. – Disse Maria, passando a mão pelo estômago.

 - Sim, não é má ideia. Acho que o Tomás já está a ficar com fome. – Argumentou Sofia, com o olhar preso na sua barriga que crescia de dia para dia.

 - Tomás? É um rapaz? – Perguntei, e iniciámos a caminhada até ao parque de estacionamento, onde deixávamos os nossos veículos.

 - Ainda não sei. Mas tenho a sensação de que é um rapaz, não sei, é algo que eu sinto. É claro, se for uma rapariga será bem-vinda.

 - E o pai?

 - O pai é um babado. – Todas sorrimos. Invejava Sofia, não por estar grávida, nem por estar feliz, mas por poder ter o seu amor ao seu lado. E isso, deixava-me feliz.

 Todo o percurso foi feito coberto de novidades, entre nós não havia remorsos por ter estado afastada. Tudo continuava igual. Era a este mundo que eu pertencia, sabia disso, mesmo que não tenha sido educada para viver nele.

 - E onde vamos almoçar? – Perguntou Maria já algo impaciente.

 - Podíamos ir àquele café ali. – Joana apontou para o café onde tantas vezes almoçávamos juntas. – Já não vamos lá há tanto tempo…

 - Ah. Madalena. Nós vamos andando, acho que tu tens um assunto por resolver. – Maria indicou-me o local onde se encontrava o meu ‘assunto por resolver’ com o olhar.

 Um carro cinzento escuro estava estacionada não muito longe do sitio onde nos encontrávamos. E o condutor? Esse, tentava passar despercebido, aos olhos dos outros, mas aos meus… era impossível. Caminhei em direção ao carro sem saber ao certo o que ia fazer ou dizer. Encontrava-me a poucos metros de distância quando a porta do condutor de abriu lentamente. Do interior saiu o meu mundo, saiu o dono do meu coração. Saiu do dono de uma cara de menino e de um olhar ternurento. Saiu a razão pela qual acelerei o passo e só parar quando a sua respiração se fazia sentir na minha pele. Abracei-o com todas as forças que tinha. Sabia que, passassem horas, dias, semanas, meses ou anos, o seu perfume, as suas formas, a sua pele, nunca seriam esquecidas. E então, olhámo-nos.

“Os olhos dizem o que o coração sente.”

segunda-feira, 2 de julho de 2012

44º Capítulo: O regresso



 “No fundo, sou sozinha. Há verdades que nem a Deus eu contei. E nem a mim mesma. Sou um segredo fechado a sete chaves. Por favor, poupa-me. Estou tão só. Eu e os meus rituais. O telefone não toca. Dói. Mas é Deus que me poupa.” (Clarice Lispector)



 Só conseguia pensar que a minha estadia na vila alentejana estava prestes a terminar. Durante vários dias, ignorei o meu pai, se ele estava em casa, eu saia, se estava sentado à mesa pronto para jantar, eu dizia que não tinha fome, se estava na quinta, esperava que fosse tratar da horta, para poder aparelhar rapidamente Zeus e sair com ele. Durante toda a minha estadia, este era a minha única companhia, durante a maior parte do dia. Via, no olhar de minha mãe, o desespero, tentava, sem sucesso, arranjar uma solução. Como se houvesse solução possível.

 Todas as noites, quando entrava em casa, à hora de jantar, a conversa entre os meus dois progenitores era sempre a mesma, embora se calassem quando me viam.

 - A tua filha já nem come. Se tu não mudas, ela qualquer dia já nem mete cá os pés. – Avisava a minha mãe.

 - Então que não meta! – Respondia o meu pai com o rosto vermelho, ofendido.

 A minha mãe acabava sempre por soltar umas lágrimas, ela não admitia perder-me. O meu pai ignorava-a, tal como fazia comigo. Às vezes, dava comigo a pensar se ele não se sentiria mal com ele próprio.

 «Sinto a tua falta, Maria.», pensava. Sentia a falta do seu ombro amigo, dos seus concelhos, da sua companhia.

 Dava-me tempo para tomar o meu duche, depois subia até ao meu quarto para que eu não ficasse sozinha. Pedia-me desculpa por algo que não era culpa dela, abraçava-me como só uma mãe sabe fazê-lo. Acabávamos as duas por chorar, eu porque amava Ruben incondicionalmente, porque mesmo com 22 anos limitava-me a ficar entre a espada que o meu pai segurava e a parede, porque o meu próprio pai me tratava como se fosse uma criminosa ou alguém com uma grave doença contagiosa. E ela, chorava porque não gostava de me ver chorar, porque sentia a minha dor, porque dava tudo para que nada fosse assim. Se ainda tinha amor próprio, estava na hora de sair dali. De voltar à minha casa, à minha verdadeira casa, porque aquela que me tinha visto crescer, já não me pertencia.



***



 Quando saíra da casa dos meus progenitores ainda mal o sol tinha nascido. O céu ainda se cobria de um azul escuro, as estrelas ainda brilhavam, muito longe. Sabia que a esta hora o meu pai já deveria ter saído de casa. Com as malas no carro, entrei no quarto do meu irmão, Artur. Dormia profundamente, sereno, aconcheguei-o, acariciei-o e dei-lhe um beijo de despedida. Odiava abandoná-lo assim, odiava deixá-lo por tempo indefinido, sabendo que crescia de dia para dia e eu não o poderia acompanhar. Por último, despedi-me da minha mãe. Ainda dormia, mas depressa acordou quando sentiu a minha mão passar pelos seus cabelos. Tal como fazia todas as noites, pedia-me desculpa, e foi com essas palavras que virei as costas aquela casa e para regressar à cidade que me acolhera.

 Agora, a atravessar a ponte sobre o Tejo, o trânsito tornava-se cada vez mais denso. Era bom sentir a energia de uma cidade cheia de vida.

 A casa, completamente vazia, esperava-me. Nem a luz que entrava pelas janelas fazia com que ficasse com um pouco mais de vida, ou então era eu que não estava disposta para isso. O sofá seria a minha companhia até que a vontade de fazer alguma coisa de útil chegasse e se apoderasse de mim.

 Tardou um pouco, mas chegou. A campainha soou. «Não estou em casa», pensei, mas depois uma voz chamou por mim, uma voz que iria reconhecer onde quer que fosse. Com tamanha agilidade, saltei do sofá e corri para a porta, abrindo-a de rompante.

 - Madalena. – Disse o meu nome mais uma vez, envolvido num suspiro. – Eu… eu… uh… tudo bem? – Improvisou.

 - Entra. – Convidei. Hesitante, fomos até à sala de estar. – Queres beber alguma coisa? – Perguntei para quebrar o silêncio.

 - Não. – Respondeu com prontidão. Assenti. – Madalena, eu vim cá porque… - A sua voz acabara por se perder no espaço.

 - Sim? - Incentivei.

 - Eu pensei que… Desculpa. – Olhou-me. – Desculpa por ter sido uma idiota contigo. Disse coisas sem pensar, tu não tens culpa. Nem sabes como tenho andado estes últimos dias. Não sabia de ti, não avisaste ninguém para onde ias, nem tinha forma de perguntar ao Ruben. – As palavras saíram-lhe com uma velocidade exorbitante, mas percetíveis. Tão percetíveis que ao ouvir o nome de Ruben o meu coração acelerou, uma sensação de culpa e uma dor no peito invadiram-me, mas não deixei que isso se fizesse notar.

 - Claro que desculpo.

 - Eu… eu nem… - Preparava-se para continuar, mas novamente olhou para mim e assimilou o que acabara de dizer. – Obrigada Madalena, obrigada. – Sem aviso prévio, os seus braços contornaram o meu pescoço, ambas exercíamos força para diminuir um espaço que já não existia. Soltávamos risadas de plena euforia.

 - Então e o Ruben? – Perguntou quando nos afastámos.

 - Maria… - Suspirei. – Não sei.

 - Não sabes? Ele não sabe que já voltaste?

 - Não, não sabe.

 - Tu deves querer ir ter com ele e eu estou aqui a fazer-te perder tempo. – Disse enquanto se preparava para ir embora.

 - Eu não vou ter com ele.

 - Não?

 - Nós… Nós já não estamos juntos.

 - Não estão? Isso não é possível… Vocês… O que é que aconteceu? - Acabei por lhe contar toda a terrível história, entre as muitas lágrimas que começavam a cair. Por fim, Maria já chorava comigo, abraçadas, sentia que o mundo ia desabar e ela estava lá para o segurar, para não deixar que ele se quebrasse em quarenta mil bocados. Aquela história que lhe contava ainda me parecia irreal, apenas sabia que era minha pois o meu coração começava a bater a mil, a cabeça começava a doer e os olhos inchar. Talvez partir tivesse sido a pior das ideias.

 - Desculpa, eu também não devia ter dito o que disse. – Desculpava-se Maria.

 - O meu pai ganhou, Maria, ele ganhou. Ele ganha sempre. – E num choro compulsivo, desfiz-me nos braços de Maria. Não costumava chorar, mas as forças que precisava para levantar novamente os muros do meu coração haviam esgotado nos últimos dias.

 - Tu ama-lo, não é? – Assenti. – Tudo se irá resolver, isto não pode acabar assim. – Sorriu-me, e eu senti-me reconfortada.

 Talvez um dia, mais tarde, quem sabe, encontraria alguém que substituísse Ruben. Mas no fundo, eu sabia que esse alguém, nunca passaria disso mesmo, um substituto.