segunda-feira, 2 de julho de 2012

44º Capítulo: O regresso



 “No fundo, sou sozinha. Há verdades que nem a Deus eu contei. E nem a mim mesma. Sou um segredo fechado a sete chaves. Por favor, poupa-me. Estou tão só. Eu e os meus rituais. O telefone não toca. Dói. Mas é Deus que me poupa.” (Clarice Lispector)



 Só conseguia pensar que a minha estadia na vila alentejana estava prestes a terminar. Durante vários dias, ignorei o meu pai, se ele estava em casa, eu saia, se estava sentado à mesa pronto para jantar, eu dizia que não tinha fome, se estava na quinta, esperava que fosse tratar da horta, para poder aparelhar rapidamente Zeus e sair com ele. Durante toda a minha estadia, este era a minha única companhia, durante a maior parte do dia. Via, no olhar de minha mãe, o desespero, tentava, sem sucesso, arranjar uma solução. Como se houvesse solução possível.

 Todas as noites, quando entrava em casa, à hora de jantar, a conversa entre os meus dois progenitores era sempre a mesma, embora se calassem quando me viam.

 - A tua filha já nem come. Se tu não mudas, ela qualquer dia já nem mete cá os pés. – Avisava a minha mãe.

 - Então que não meta! – Respondia o meu pai com o rosto vermelho, ofendido.

 A minha mãe acabava sempre por soltar umas lágrimas, ela não admitia perder-me. O meu pai ignorava-a, tal como fazia comigo. Às vezes, dava comigo a pensar se ele não se sentiria mal com ele próprio.

 «Sinto a tua falta, Maria.», pensava. Sentia a falta do seu ombro amigo, dos seus concelhos, da sua companhia.

 Dava-me tempo para tomar o meu duche, depois subia até ao meu quarto para que eu não ficasse sozinha. Pedia-me desculpa por algo que não era culpa dela, abraçava-me como só uma mãe sabe fazê-lo. Acabávamos as duas por chorar, eu porque amava Ruben incondicionalmente, porque mesmo com 22 anos limitava-me a ficar entre a espada que o meu pai segurava e a parede, porque o meu próprio pai me tratava como se fosse uma criminosa ou alguém com uma grave doença contagiosa. E ela, chorava porque não gostava de me ver chorar, porque sentia a minha dor, porque dava tudo para que nada fosse assim. Se ainda tinha amor próprio, estava na hora de sair dali. De voltar à minha casa, à minha verdadeira casa, porque aquela que me tinha visto crescer, já não me pertencia.



***



 Quando saíra da casa dos meus progenitores ainda mal o sol tinha nascido. O céu ainda se cobria de um azul escuro, as estrelas ainda brilhavam, muito longe. Sabia que a esta hora o meu pai já deveria ter saído de casa. Com as malas no carro, entrei no quarto do meu irmão, Artur. Dormia profundamente, sereno, aconcheguei-o, acariciei-o e dei-lhe um beijo de despedida. Odiava abandoná-lo assim, odiava deixá-lo por tempo indefinido, sabendo que crescia de dia para dia e eu não o poderia acompanhar. Por último, despedi-me da minha mãe. Ainda dormia, mas depressa acordou quando sentiu a minha mão passar pelos seus cabelos. Tal como fazia todas as noites, pedia-me desculpa, e foi com essas palavras que virei as costas aquela casa e para regressar à cidade que me acolhera.

 Agora, a atravessar a ponte sobre o Tejo, o trânsito tornava-se cada vez mais denso. Era bom sentir a energia de uma cidade cheia de vida.

 A casa, completamente vazia, esperava-me. Nem a luz que entrava pelas janelas fazia com que ficasse com um pouco mais de vida, ou então era eu que não estava disposta para isso. O sofá seria a minha companhia até que a vontade de fazer alguma coisa de útil chegasse e se apoderasse de mim.

 Tardou um pouco, mas chegou. A campainha soou. «Não estou em casa», pensei, mas depois uma voz chamou por mim, uma voz que iria reconhecer onde quer que fosse. Com tamanha agilidade, saltei do sofá e corri para a porta, abrindo-a de rompante.

 - Madalena. – Disse o meu nome mais uma vez, envolvido num suspiro. – Eu… eu… uh… tudo bem? – Improvisou.

 - Entra. – Convidei. Hesitante, fomos até à sala de estar. – Queres beber alguma coisa? – Perguntei para quebrar o silêncio.

 - Não. – Respondeu com prontidão. Assenti. – Madalena, eu vim cá porque… - A sua voz acabara por se perder no espaço.

 - Sim? - Incentivei.

 - Eu pensei que… Desculpa. – Olhou-me. – Desculpa por ter sido uma idiota contigo. Disse coisas sem pensar, tu não tens culpa. Nem sabes como tenho andado estes últimos dias. Não sabia de ti, não avisaste ninguém para onde ias, nem tinha forma de perguntar ao Ruben. – As palavras saíram-lhe com uma velocidade exorbitante, mas percetíveis. Tão percetíveis que ao ouvir o nome de Ruben o meu coração acelerou, uma sensação de culpa e uma dor no peito invadiram-me, mas não deixei que isso se fizesse notar.

 - Claro que desculpo.

 - Eu… eu nem… - Preparava-se para continuar, mas novamente olhou para mim e assimilou o que acabara de dizer. – Obrigada Madalena, obrigada. – Sem aviso prévio, os seus braços contornaram o meu pescoço, ambas exercíamos força para diminuir um espaço que já não existia. Soltávamos risadas de plena euforia.

 - Então e o Ruben? – Perguntou quando nos afastámos.

 - Maria… - Suspirei. – Não sei.

 - Não sabes? Ele não sabe que já voltaste?

 - Não, não sabe.

 - Tu deves querer ir ter com ele e eu estou aqui a fazer-te perder tempo. – Disse enquanto se preparava para ir embora.

 - Eu não vou ter com ele.

 - Não?

 - Nós… Nós já não estamos juntos.

 - Não estão? Isso não é possível… Vocês… O que é que aconteceu? - Acabei por lhe contar toda a terrível história, entre as muitas lágrimas que começavam a cair. Por fim, Maria já chorava comigo, abraçadas, sentia que o mundo ia desabar e ela estava lá para o segurar, para não deixar que ele se quebrasse em quarenta mil bocados. Aquela história que lhe contava ainda me parecia irreal, apenas sabia que era minha pois o meu coração começava a bater a mil, a cabeça começava a doer e os olhos inchar. Talvez partir tivesse sido a pior das ideias.

 - Desculpa, eu também não devia ter dito o que disse. – Desculpava-se Maria.

 - O meu pai ganhou, Maria, ele ganhou. Ele ganha sempre. – E num choro compulsivo, desfiz-me nos braços de Maria. Não costumava chorar, mas as forças que precisava para levantar novamente os muros do meu coração haviam esgotado nos últimos dias.

 - Tu ama-lo, não é? – Assenti. – Tudo se irá resolver, isto não pode acabar assim. – Sorriu-me, e eu senti-me reconfortada.

 Talvez um dia, mais tarde, quem sabe, encontraria alguém que substituísse Ruben. Mas no fundo, eu sabia que esse alguém, nunca passaria disso mesmo, um substituto.