Em dias, algo distantes, lera, num dos tantos livros que se
acumulavam na sala de estar, cujas páginas já soltavam um aroma doce e, com o
passar do tempo, se tornavam cada vez mais amarelas: “Namoro é quando não se tem certeza absoluta de nada, a cada dia um
segredo é revelado, brotam informações novas de onde menos se espera. De manhã,
um silêncio inquietante. À tarde, um mal-entendido. À noite, um torpedo
reconciliador e uma declaração de amor. Namoro é teste, é amostra, é ensaio e,
por isso, a dedicação é intensa, a sedução é ininterrupta, os minutos são
contados, os meses são comemorados, a vontade de surpreender não cessa – e é a
única relação que dá o devido espaço para a saudade, que é fermento e afrodisíaco.
Depois de passar os dias vendo-se só de vez em quando, viajar para um fim de
semana juntos vira o céu na Terra: nunca uma sexta-feira nasce tão aguardada,
numa uma segunda-feira é enfrentada com tanta leveza”.
A desilusão que tivera nessa manhã e o receio com que passara a
encarar a dia seguinte, desde que o meu pai me fizera o ultimato, desligaram o
meu corpo e a minha alma do mundo. Ao som da voz da Natureza, os pensamentos
divagavam para muito longe, corriam ao encontro de um alguém que se encontrava
a mais de 100 quilómetros de distância, embora ainda houvesse tentado
contê-los.
Sabia ter chegado o momento de fazer o exame de consciência,
talvez descobrisse as razões que teriam levado meu pai a tomar tal decisão e a
falta de força que eu tivera para não conseguir levá-lo a mudar de ideias.
Porém, em vez da alma, examinei o coração. Como poderia deixar Ruben, se só o
facto de pensar em fazê-lo me causava uma enorme e angustiante dor? Como
poderia virar costas àqueles que tanto amava? Quaisquer das limitadas soluções
sugeriam que perderia pessoas importantes, demasiado importantes para serem
afastadas da minha vida, pois, certamente, chegariam alturas em que me iria
arrepender da escolha feita, quer escolhesse a família ou o amor que me unia a
Ruben. E, desta vez, a culpa nem tinha sido minha.
A memória transportava-me, através do tempo, àqueles momentos em
que o surpreendera com simples palavras, com simples olhares, que normalmente
sabiam velar tão bem os pensamentos que me atormentavam a alma, embora fossem
poucos os seres de coração latejante que fossem dotados o suficiente para
quebrar o selo e chegar à parte incorporal mais profunda dentro do próprio
corpo – a alma.
Estendida sobre a flora, envolta na claridade de uma tarde
primaveril, imaginava a expressão de felicidade estampada no rosto de Ruben
quando, na próxima vez em que estivesse com ele, soltasse mais um sentido
‘amo-te’. Por momentos, imaginei-me, mais uma vez, nos seus braços. O que nunca
me tinham dito era que o desejo e o êxito eram duas coisas diferentes e a
experiência da vida ainda não me ensinara que a vitória nem sempre cabe aos
mais arrojados.
Onde horas da noite. Estava uma noite excessivamente fria, mas
isso não era motivo para que a lua não brilhasse, no alto firmamento. E brilhava,
com grande intensidade, acompanhada das estrelas que, um dia, há muitos anos
atrás, foram o passaporte para o novo mundo. A luz prateada reflectia-se nas
altas folhas verdes de cada árvore, nos rebentos verdejantes que cobriam todo o
chão e, salvo nas grandes pedras que se encontravam ao longo do percurso da
ribeira, a água brilhava ao refletir aquele magnifico corpo celestial como um
espelho.
Eram horas de regressar a casa, à casa que já não tinha como
minha, ao reencontro de alguém que, neste momento, tinha, na minha mente, como
uma profunda desilusão. Mas não me podia permitir pensar isto do meu pai,
afinal, aquele senhor era a minha entidade paternal mais próxima, era a ele a
pessoa a quem eu devia respeito. Mas será que ele me havia respeitado a mim?
Não, esta não era uma questão para a qual eu quisesse uma resposta.
Teria de regressar com Zeus até à quinta, teria de regressar a
casa, teria de passar pelo quarto onde o meu irmão dormia sem ter coragem de
entrar para o aconchegar, de o envolver nos meus braços ou de simplesmente
vê-lo dormir, sem ter coragem de fazer uma escolha, teria de regressar àquele
que, em tempos, fora o meu quarto e passar as próximas horas sozinha, numa luta
constante com os olhos que teimavam em manter-se abertos, enquanto a minha
vontade era cerrá-los para que pudesse sonhar que tudo teria sido sonho, para
que, de manhã, ao acordar, percebesse que tudo não passara de um pesadelo.
***
Aquele aparelho tecnológico, hoje indispensável, já contava com
algumas chamadas não atendidas. Ruben. Ruben, era a pessoa a quem estava
associada a palavra ‘Amor’ que aparecia no ecrã tátil. O que faria se ele me
tornasse a ligar? Como lhe poderia dizer que tudo tinha terminado? Como poderia
estragar a sua felicidade, pois, neste momento, certamente, estaria a festejar
mais uma vitória com o plantel encarnado? Era uma cobarde.
A água quente corria sobre o meu corpo gelado. Durante largos
minutos, tentei relaxar os músculos mas o frio e o medo, que se haviam
apoderado de mim, não o permitiram. Na verdade, em desespero, tentara prolongar
o duche ao máximo, deixara-me ficar debaixo de água mesmo quando os
procedimentos naturais já estavam realizados, a pele já mostrava os seus
sinais, ficava encarquilhada com o alongar dos minutos, especialmente a dos
dedos. Afinal, há quem diga que a água lava tudo. Infelizmente, nem tudo.
«A drop in the ocean/ A change in the weather/ I was praying/ That you
and me/ Might end up together/ It’s like wishing for rain/ As I stand in the
desert…» - Uma luz brilhante, algures no centro da cama, fizera-se acompanhar
pela melodia que se designava a anunciar a chegada de uma nova chamada. Já com
a roupa com que iria dormir vestida, corri, embora a distância fosse apenas de
dois passos, ao encontro do som que se fazia ouvir alto demais. Por momentos,
desejei que fosse Ruben só para poder ouvir a sua voz uma última vez, no
entanto, outra pessoa esperava, do outro lado, uma reação minha. Com o
telemóvel perto do ouvido, atendi a chamada e continuei no silêncio que me
acompanhava há largas horas.
- Madalena? – Uma voz conhecida chamava por mim.
- Sim? – Respondi com pouca clareza. Neste momento, o meu coração
acelerou, a minha cabeça premiou-me com uma imensa dor, por debaixo
das pálpebras formavam-se pequenas lágrimas que, segundos mais tarde,
escorreriam grandes e gordas, deixando rasto no meu rosto cansado.
- Chica, ¿qué pasa? Ruben está preocupado por ti, te ha
llamado durante todo el día. – Repreendeu-me.
- Eu sei, mas não tenho estado com o telemóvel. – Tentava controlar-me,
era uma missão difícil, contudo, para ajudar, respirava fundo. Enchia,
silenciosamente, os pulmões de ar, para depois, quando o expulsasse, todo o
peito se envolvesse num agitar insuportável e aí, voltaria a repetir tudo
novamente.
- Espera un segundo,
voy llamarlo.
- Não! – Quase gritei, mas depressa selei os lábios. Numa atitude
quase infantil, tive medo de que o meu pai viesse ao quarto procurando saber
porque e com quem estaria eu a gritar. – Não vás, por favor! – Pedi, num tom de
voz mais moderado.
- ¿Por qué no?
- Javi, eu não posso… eu… - Gaguejava enquanto as lágrimas
começavam a percorrer o meu rosto descontroladamente.
- Madalena, ¿estás bien? ¿Estás llorando?
- Não, não estou bem. – Admiti. – O
meu pai… ele… ele não quer… - Do outro lado do Tejo, Javi soltava palavras como
“calma”, para que fosse capaz de construir uma frase com sentido. Era difícil,
durante largas horas apenas havia pensado mas, ao verbalizar, tudo ficava muito
mais complexo, mais doloroso. – Entre mim e o Ruben não pode existir nada,
Javi, nada. - Consegui, por fim, dizer.
- ¿Nada? Ruben va a…
- Eu tive de escolher entre o Ruben e
a minha família. Eu… eu sou fraca, cobarde. O meu pai ganhou, Javi. E eu não os
consigo abandonar… E não quero…
- ¿Y Ruben? ¿Dónde está en medio de todo? ¿Y tu padre, que tiene que ver
con tu vida?
- O meu pai é o meu pai, ele
ameaçou-me com o meu irmão! O Ruben segue com a vida dele, como se nunca me
tivesse conhecido. Um dia, ele encontrará alguém que o faça feliz, alguém que o
possa fazer feliz.
- Pero, ahora, quien o hace feliz
eres tu. – Javi não precisava de falar muito comigo, na verdade, duas palavras
bastavam para dizer tudo, pois este jogador espanhol sabia fazer as perguntas
para as quais eu não tinha resposta nos momentos mais apropriados. - ¿Y cuando le dices?
- Não digo… Eu não sou capaz.
- Ruben me está mirando, tengo de ir.
Pero, Madalena, el amor es todo. – Javi não precisou de dizer mais nada e eu
não precisei de responder. Aos seus olhos, sabia que estava a cometer um erro,
ou melhor, vários erros. Também sabia que me iria arrepender, quando, num
futuro próximo, visse o meu mundo nos braços de outra pessoa, uma pessoa que
não tivesse medo de arriscar, e aí teria de assistir ao desmoronar do meu
coração, na primeira fila. Despedimo-nos em breves palavras, nada mais seria
preciso dizer. Sabia que Ruben contava com bons amigos, um deles Javi, que
certamente lhe contaria o que eu não era capaz.
Era tempo de desistir.