Uma leve e fresca brisa fazia-se sentir junto ao meu ouvido. Uma
brisa suave e infantil que partia de uns lábios sorridentes em contraste com a
maravilhosa pele de bebé, também ela suave, frágil. Sabia que os seus olhos
estavam pousados em mim, ansiosos, conseguia senti-lo e, os seus pequenos
braços, apoiados no sofá, faziam pressão sobre este, onde eu permanecera longas
horas deitada depois do desejado regresso à casa situada na pequena localidade
do interior alentejano, que me vira crescer. Uma doce gargalhada interrompeu o
silêncio e, com ela a brisa aumentou de intensidade, quando senti algo pesado
pousar nas minhas pernas, até então tapadas com velho cobertor que um dia
pertencera à minha querida e amada avó, nos seus tempos de juventude.
Deveria ter força para
abrir os olhos mais cedo do que o meu corpo permitia, deveria olhar, finalmente,
aquela pequena figura que, pacientemente, esperava que acordasse, também para
aquela que me fora oferecida e que eu, tal como a primeira, amava
incondicionalmente. Pequenos fios de cabelo impediam a visão completa, mas foi
o bastante para relembrar o quão bom era voltar a casa, poder descobrir e
admirar as diferenças proporcionadas pelo crescimento constante daquela criança
que, só por existir me fazia feliz.
Naoni, a grande e bonita cadela que me havia sido oferecida,
percebeu que me queria levantar, mas não permitiu que a ignorasse nem que lhe
desse menos atenção do que a que merecia. Artur, o meu único irmão, com apenas
dois anos de idade, depressa se deixou domar pelos meus braços, e os seus,
ainda pequeninos, limitavam os movimentos do meu pescoço, num abraço apertado. Eram
estes pequenos seres que me completavam e, embora racional ou irracionalmente,
eles sabiam disso.
Do exterior da grande sala de estar, um inconfundível cheiro chegava
até mim. Mesmo sem ver o que estava confeccionado arriscava-me a tentar
adivinhar. Panquecas, chocolate quente, croissants, sumos naturais de frutas
típicas da região. Sabia que tudo isto me esperava em cima da grande mesa da
sala de jantar. Artur fez questão de me fazer companhia enquanto eu me deliciava
com tudo o que a minha mãe havia preparado para mim. O pequenino estava
eufórico, contava-me todas as suas novidades e segredos muito rapidamente,
desde a menina nova que tinha entrado para a sua sala do infantário, que
gostava de brincar na cozinha da casinha que nessa mesma sala tinham construído
e que, só por saber o seu nome, já dizia ser seu namorado, até ao novo
brinquedo que o pequeno João tinha recebido no seu mais recente aniversário.
Através das janelas da sala de jantar, podia observar a minha
progenitora. Dedicava-se à jardinagem. Com um enorme e lindo sorriso no rosto
cantarolava, o contacto com natureza é algo único, e ela não lhe era
indiferente. Acariciava, delicadamente, cada pétala. Para si, cada flor, cada
folha, era única. Felizmente, o gosto, aliás, a paixão pela natureza era algo
que tinha herdado dela. E do meu pai, o gosto pelos animais. De ambos, a
adoração do campo. Se assim era, ainda me pergunto: como me tinha conseguido
habituar à vida de uma grande cidade? É certo que, quando se vive toda a
infância e adolescência no interior do país, viver na cidade é algo mais
parecido com um sonho. Um sonho que nunca supera as altas expetativas…
- Mãe. – Chamei ao sair da casa pela porta principal, que dava
acesso ao jardim frontal.
- Minha filha. – Deixou as respetivas ‘ferramentas’ próprias para
a jardinagem e tomou as minhas mãos nas suas. Mostrei-lhe um sorriso. Na
verdade, queria poder contar-lhe que estava com Ruben. Não sabia se era o
momento certo e muito menos sabia se deveria dizer já que o Ruben era o mesmo
Ruben, jogador de futebol, que todos conheciam.
- Mãe, eu tenho algo para lhe dizer. A si e ao pai. – Olhei para
todo o jardim, na esperança de o encontrar. – Ele está em casa?
- Não, minha filha, o teu pai está na quinta, só deve voltar ao
pôr-do-sol. Mas sabes que podes ir ter com ele. – Por momentos fiquei sem nada
dizer. Sabia que tinha de anunciar o que se estava a passar, não só pelo Ruben
ou por mim, mas sim pelo nós e, acima de tudo, pelos últimos acontecimentos que
ainda estavam frescos na minha memória e no meu coração. Se não podia ser com
os dois ao mesmo tempo, seria individualmente. – Minha querida, o que tens para
nos contar? – Artur permanecia agarrado às minhas pernas e, para meu espanto, isso
dava-me força para continuar.
- Mãe, importa-se de me acompanhar? – Conduzi-a até ao banco de
baloiço onde, durante a minha infância tantas vezes adormeci. Agora, com o meu
pequeno irmão no colo, tudo se tornava mais fácil. – Mãe, peço desculpa por não
ter contado antes, mas é algo recente. Eu tenho um namorado e… - Neste preciso
momento, Artur saltou do meu colo e correu para dentro de casa. Como era
possível que, com aquela pequena idade, compreendesse coisas como namorar?
Sabia que ele tinha ficado triste mas, no fundo, ele sabia que, acima de tudo,
eu o amava, esperava eu que ele soubesse…
- Desculpa filha, eu tenho de ir ver do teu irmão. – Desculpou-se,
sem me olhar, de modo a não o perder de vista. – Mas parabéns minha filha,
tenho a certeza que ele é uma excelente pessoa. – Será que iria dizer o mesmo
quando tivesse oportunidade de lhe dizer, especificamente, quem era, agora, o
dono do meu coração?
Optei por não os seguir, por mais pequeno que fosse, não tinha
coragem de enfrentar o meu irmão agora. Odiava vê-lo chorar, nem que fosse por
uma mera birra, na verdade, o sentimento era algo apropriado à velha e já gasta
frase: “Parte-me o coração”.
Subi até ao primeiro andar, ocupado, maioritariamente, pelos
quartos. Se o meu pai estava na quinta, talvez me fizesse companhia num passeio
a cavalo. Apanhei o cabelo numa larga trança e vesti a roupa que usava sempre
que montava aqueles grandiosos animais.
Apreciei e absorvi tudo o que a natureza me proporcionava durante
a curta caminhada de casa até à quinta. Procurei pelo meu pai e lá estava ele. Escovava
Zeus, o meu cavalo predileto, na verdade, o nome era o ideal para ele, visto
que Zeus era um Deus grego - Rei do Olimpo e dos Deuses -, era mesmo isso que
ele era, um rei quando comparado com os restantes cavalos que ali habitavam,
era o maior de todos eles, negro como a escuridão. Aproximei-me de ambos.
- Vai montá-lo? – Perguntei cumprimentando o meu progenitor.
- Ia, mas já que estás aqui, não queres ser tu? Há tanto tempo que
não andas com ele…
- Claro que quero, pai. Mas, faça-me companhia. – Pedi.
Aparelhámos os respetivos animais e estávamos prontos para o longo passeio que
se adivinhava pelas planícies alentejanas.
Era algo totalmente diferente do litoral, a agricultura antiga
predominava, as máquinas ainda tinham rendido poucos homens, talvez fosse um
dos fatores para que aqueles grandes campos de cultivo fossem tão maravilhosos.
As grandes sombras proporcionadas pelas árvores eram apetecíveis, a água que
corria nas ribeiras, corria livre, sem pressas e os pássaros cantarolavam,
incansavelmente, uma melodia sem igual. Comandados pela nossa vontade, os
cavalos andavam, agora, lentamente.
- Pai, tenho uma coisa para lhe contar. – Rematei. Fixei o
horizonte e continuei. – Eu conheci uma pessoa e…
- Um namorado? – Interrompeu-me, perspicaz. Um sorriso cresceu-lhe
nos lábios e, automaticamente, os meus imitaram o gesto.
- Uh… Sim. – Envergonhada, com o calor nas faces a crescer e, por consequência,
a seu vermelho a ficar mais intenso, admiti.
- Diz-me que arranjaste um benfiquista! – Literalmente, queria
poder responder-lhe. Era literalmente um benfiquista. A sua fixação e, acima de
tudo, paixão, amor, pelo clube era algo que me divertia.
- Sim, pai, é. Mas…
- Finalmente, ganhaste juízo! – Interrompeu-me. – Quero conhecer o
rapaz. Na próxima vez que aqui vieres, trá-lo cá. – Sorriu-me mais uma vez. –
Mas vá, conta-me lá, como se chama, o que faz…?
- Chama-se Ruben. – Respondi, sempre na esperança que o senhor
associasse o nome à pessoa em questão.
- Trabalha?
- Sim.
- Então faz o quê?
- É jogador de futebol. – Respondi a medo. Por momentos as suas
sobrancelhas uniram-se em sinal de desconfiança, para depois voltarem ao estado
normal.
- Joga em algum clube conhecido? Da terceira ou da segunda
divisão?
- Não, pai, joga na... joga na primeira liga. – Respondi muito a
medo. Algo, na minha mente, me dizia para não continuar, mas as cartas estavam
lançadas.
- Na primeira…? Tens a certeza?
- É o… Ruben…
- Sim, filha, já sei que se chama Ruben, mas tem apelido?
- Amorim. – Sussurrei. Várias cores ocuparam o rosto do meu pai.
Esperava, ansiosamente, uma resposta, uma atitude, que tardava em chegar.
- O Ruben… Amorim… do… Benfica? – Gaguejava mas a sua voz, a cada
palavra pronunciada, subia vários tons. Limitei-me apenas a mover a cabeça para
cima e depois para baixo, uma única vez. – Não, não pode ser!
- O que se passa?
- O que se passa, Madalena? O que se passa? Tu endoideceste? Ele
é… ele é um jogador de futebol! Ele não pertence ao teu mundo! – Gritava-me.
- E qual é o meu mundo?
- Tu não foste criada para te dares com essa gente! – Argumentava furioso.
- Pai, ele é uma pessoa normal. É simpático, divertido, gosta de
mim…
- Gosta de ti? Gosta de ti, Madalena? – Abanava a cabeça para a
direita e para a esquerda, repetidamente. – Não! Eu não te dou o meu
consentimento para estares com essas pessoas!
- Pai, eu não preciso do seu consentimento. – Nos meus olhos,
pequenas lágrimas se formavam cada vez com maior rapidez. Também eu lhe gritei
para me fazer ouvir.
- Mas que falta de educação é essa? É isso que aprendes com esse…?
- Esse tem nome! Chama-se Ruben e eu amo-o! – Chorava.
- Amas? Sabes lá o que é isso! Não passas de uma miúda! –
Insultou-me. – Imagino o que ele não se divertiu já às tuas custas!
- Mas o que é que o pai pensa que está a fazer?
- Vais ter de escolher! Ou ele ou nós! – Nunca esperei que o meu
pai fosse capaz de me meter ‘entre a espada e a parede’. Sentia algo semelhante
à desilusão. Sem uma explicação.
- Desculpe?
- Escolhe! Ou o escolhes a ele ou nos escolhes a nós. Se o
escolheres nunca mais te quero ver. Nunca mais tens permissão para ver o teu
irmão! Se assim for ele há-de esquecer-se de ti.
- Pai? – Sussurrei. – Pai! – Tentava gritar nos momentos em que o
choro compulsivo me dava tréguas por segundos. A figura que eu tomava como a
pessoa mais justa do mundo, içara as rédeas do cavalo e, a galope, percorreu,
muito rapidamente, o caminho que havíamos trilhado.
fabuloso...
ResponderEliminarquero mais... tou super curiosa para ver o proximo...
continua...
Realmente os pais são sempre um grande problema. Parabéns pelo capitulo e não demores tanto tempo a publicar o proximo. Continua
ResponderEliminarAdorei!
ResponderEliminarFogo, o pai dela não está bom da cabeça...
Quero o próximo rápido, por favor!
Beijinhos
ADOREI!
ResponderEliminarMas agora preciso com urgência do próximo!
Bjokinhas
Mariaa
De quem é esta musica que metes.te no blog?????
ResponderEliminarA música é dos Ron Pope "A Drop In The Ocean".
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