Mo-no-cór-di-co.
Era a única forma de descrever o tempo, enfadonho. Enfadonha tinha sido a minha
vida nos últimos dias. Uma nova rotina se criara, o meu irmão acordava-me aos
berros, todos os dias, sempre demasiado cedo, as tardes eram passadas a ver
televisão, ou na Internet, que cada vez perdia mais interesse, e o desenho. Por
vezes sentava-me no muro mais alto de uma igreja, ou num banco do jardim a
desenhar tudo o que os meus olhos conseguiam detetar. As noites, essas eram de
longe melhores que os dias, na companhia de amigos, gozo, piadas secas,
histórias vergonhosas, as nossas gargalhadas era o único ruido que se ouvia na
noite.
*Dia 24 de
Dezembro*
O dia estava
agitado, ainda agora tinha saltado da cama e já o Artur andava a procurar os
presentes que por magia tinham desaparecido debaixo da árvore (nem imaginava
que estavam no meu carro, local onde ele não iria mexer antes da meia noite).
À noite, a casa
iria estar cheia. Avós, pais, tios, primos e, cada ano que passava a família
crescia mais e mais. Adorava estes dias! Juntávamo-nos todos para a ceia,
trocávamos presentes e, o momento alto da noite era, sem dúvida, o aparecimento
do Pai Natal.
Ajudava a minha
mãe e avós (materna e paterna) na cozinha, ou melhor, enquanto se dedicavam a
fazer os melhores doces que conheciam, eu quando não estava a lavar os
recipientes sujos ou a partir ovos, estava agarrada às latas de leite
condensado ou aos recipientes onde eram misturados os ingredientes para os
bolos. Aquelas três senhoras riam-se, eu parecia uma criança, e era assim que
me sentia feliz.
Lá fora, os
homens (o meu pai, os meus avós e, claro, o Artur) dedicavam-se ao almoço. Era
expressamente proibido, e impossível, confeccionar-se algo, que não levasse
farinha, naquela cozinha. Pela expressão da Naomi, quando conseguia fugir do
Artur, o cheiro a grelhados já se fazia sentir.
Pela milésima
vez, fui expulsa da cozinha, embora acabassem sempre por me chamar quando
precisavam de ajuda. A tarefa era arrumar a mesa da sala de jantar para que o
almoço fosse servido. Assim o fiz.
- Vá lá
pessoal, nada de sujar muito os pratos, quem lava a loiça sou eu. – Reclamei, o
que provocou risota geral.
- Madalena,
minha netinha, vai-te preparando porque quem gosta da casa cheia é assim. E eu
não quero só um bisneto.
- Oh avó, quem
é que lhe disse que eu quero ter filhos assim tão cedo?
- Já não, minha
querida, já não.
Os meus tios e
primos começaram a chegar. As mulheres juntaram-se na cozinha, os homens
discutiam futebol em frente à televisão da sala de estar. «Maldita a hora em
que inventaram o Benfica TV». As crianças mais pequenas brincavam pelos
corredores da casa, no pátio, sempre em grandes correrias com a Naomi. Eu e os
restantes distribuímo-nos. E, felizmente, fui substituída na cozinha.
Felizmente,
também, não era a mais velha da minha geração. Rita, acabara o seu curso há
cerca de cinco meses, agora era uma cabeleireira e esteticista profissional, o
que na verdade hoje fazia-me imenso jeito. Depois de uma manha inteira enfiada na
cozinha, os estragos começavam a ser visíveis. Não que me importasse demasiado
com esses pormenores mas nenhuma mulher gosta de aparecer com as mãos ásperas e
cheias de gretas. Depois de um banho relaxante, vesti novamente uma roupa
prática. Rita dedicou tarde a tratar de mim, unhas, depilação, penteado, estava
tudo nas mãos dela. Os homens olhavam-nos quando eu soltava um grito de dor ao
puxar o pêlo errado do sobrolho, ou ao esticar o cabelo. Ouviam-nos falar de
coisas das quais não entendiam, cores de verniz, unhas quadradas ou redondas.
Não importava.
- Oh, Rita tem
cuidado. – Aconselhava-a enquanto me tratava as cutículas.
- Chiu cala-te.
Deixa ouvir.
- Quem me manda
a mim nascer numa família de lampiões?
- Ouve lá, oh,
é melhor deixares ouvir. Daqui a nada vão mostrar o jantar de Natal.
- Só com a
equipa de futebol? – Perguntei com curiosidade, o Ruben não me tinha falado em
nada.
- Sim.
- Quando foi?
- Não sei bem,
acho que foi durante esta semana.
- Ah, está bem.
– Mostrei-me desinteressada.
Ruben apareceu
no televisor com uma mensagem de Natal. Um sorriso cresceu. Levantei-me de
repente do sofá, derramando um pouco de verniz vermelho pelos dedos, e
levantei-o som da televisão.
- Madalena o
que é que te deu? Olha o que fizeste! – Repreendeu-me Rita.
- Chiu!
- Oh lagarta,
isso não é o Sporting!
- Eu sei que
não é. Já não posso estudar o adversário?
- Pois sim, tá
bem.
Voltei para o
lugar de onde tinha saltado há instantes. Todos olharam, especialmente o meu
pai que aproveitou para lançar um comentário.
- A minha filha
está a acordar, finalmente!
- Pai, não
comece!
- Já parei. –
Disse, levantando as mãos como se de uma rendição se tratasse.
Voltámos ao
trabalho, agora a minha atenção estava maioritariamente na televisão. Todos os
restantes membros da equipa falaram, incluindo Jorge Jesus. Rita reclamava por
ter arruinado o seu trabalho. Senti uma estranha necessidade de ouvir a sua
voz.
- Ritinha,
preciso de fazer uma chamada. Importas-te?
- Aí, vai lá.
Despacha-te! E não vás para a rua para não estragares o penteado!
- Sim,
mãezinha.
Subi até ao meu
quarto. Já estava a chamar.
- Sim?
- Olá. Posso
falar com o Sr. Ruben Filipe?
- Hum, ele de
momento não se encontra presente. Quer deixar recado? – Brincou.
- Claro,
diga-lhe que o acabei de ver na televisão e gostava de ouvir a voz dele em
tempo real. – Ouvi a sua gargalhada. – Então, acho que é tudo. Tenha um Bom
Natal.
- Igualmente.
Com a sua licença.
Fez-se
silêncio.
- Madalena?
- Ruben?
- Tenho um
presente para ti.
- O quê?
- Comprei-te um
presente.
- Mas eu não
quero nada. Nem devias gastar dinheiro comigo.
- Só tens de
aceitar.
- Mas… Eu não
te comprei nada.
- Não faz mal,
só preciso que aceites o meu.
- Posso saber o
que é?
- Qual deles?
- Afinal são
quantos presentes?
- Pensando bem,
são dois.
Do outro lado
ouve-se uma voz chamar por Ruben.
- É melhor
desligar. A dona Bela já me está a chamar. Ser o único homem forte aqui em casa
é o que dá. – Disse divertido.
- Sim, muito
forte. – Sorri. – Vai lá, beijinho.
- Beijo.
Desligou.
Desci as
escadas a correr. Quando cheguei ao pé de Rita já esta estava a arranjar as
unhas à minha mãe.
- Mãezinha,
deixe lá ela acabar as unhas da sua filha. – Pedi.
- Onde é que te
meteste? – Perguntou a minha mãe.
- Estava no
quarto.
- A fazer uma
chamada. – Completou Rita.
- Tinha de vir.
Cusca. – Acusei.
A minha mãe
olhou-me com um sorriso.
- Deixa lá
Rita, acaba lá isso à tua prima, eu posso esperar.
- Obrigada,
mãe. – Disse, ao dar-lhe um beijo na face.
Rita colocou um
ar de amuada que me estava a dar vontade de rir. Foi rápida.
- Não fiques
assim senão não tens presente. – Brinquei. Respondeu-me apenas com um sorriso
forçado.
A família já
estava toda presente. A sala de jantar organizada, ao centro a mesa onde
iriamos jantar e na periferia, apenas a ocupar um lado grande sala, a mesa dos
doces. Na sala de estar, a lareira estava acesa, Naomi deitara-se perto desta,
as luzes da árvore de Natal piscavam, incansáveis.
Eu, o meu irmão
e os meus pais, subimos para os quartos para nos vestirmos corretamente para a
noite.
O meu irmão
vestia um fato preto, com uma camisa branca e uma pequena gravata rosa. Era um
homem em miniatura. Ambos, o meu pai e o Artur, estavam vestidos de igual, à
exceção da cor da gravata, a do meu pai era vermelha. A minha mãe estava linda,
o azulão tinha sido uma ótima escolha, num vestido justo, não muito arrojado.
Por fim, eu.
O meu cabelo,
não totalmente liso, apresentava largos caracóis, que num apanhado simples
desciam pelas costas.
A família
estava toda reunida. Podíamos dar início a mais uma comemoração natalícia.
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