*31 de
Dezembro*
O último dia do
ano nasceu, o Inverno fazia-se sentir. O vento soprava agitando as árvores de
folhas perenes situadas no bonito jardim que era visível da janela do meu
quarto, as nuvens brancas, percorriam aquela imensidão azul, com pressa, mas,
apesar de tudo, o dia adivinhava-se calmo. A tarde foi passada nos braços de
Ruben, sentia-me bem assim, quase completamente reconfortante, quase feliz.
Quase. Quase esse que me calava a boca quando queria dizer que ele era meu, que
me fazia sufocar de preocupação ao pensar que quando ele me virasse as costas
para mais uma noite de sono repensasse em tudo, o todo que ainda era pouco, e
desistisse, não que esta fosse a palavra mais adequada quando se fala de Ruben,
mas que me “dispensasse”, este seria um termo correto uma vez que não haveria
nada para acabar uma vez que nada tinha começado. Este seria o último dia de
2011 que passaríamos juntos, amanhã um novo ano nascia.
As ruas estavam
apinhadas de gente, as compras de última hora faziam com que o comércio
permanecesse aberto, os jovens ansiosos pela esperada noite não aguentava,
muitos deles, dentro de casa, pois na rua, o tempo voava com o vento, rápido, não
importava. Todos se preparavam, de alguma forma, para a noite que se aproximava
e nós, sentados num banco frio de pedra apreciávamos o rio, calmo, os peixes,
diversos, que saltavam acrobaticamente expondo-se às diferentes temperaturas
entre os ambientes. Não podíamos agir como se tivéssemos sozinhos, estávamos em
plena baixa lisboeta, o que não nos impediu de apreciar a última tarde, como
amigos aos olhos dos outros, embora que nem eu soubesse o que era agir
normalmente com Ruben por perto. Certamente não existiria palavras para nos
descrever, talvez amigos especiais, ou amigos coloridos, fossem as mais
semelhantes, não as corretas. Era a sensação de um querer mais escondido por
detrás de um não poder/querer dar mais que por sua vez se escondia num beijo
suave, tímido.
O sol começou a
esconder-se, estava na hora. Estava na hora de regressar cada um à sua casa, de
começar a contar os minutos que por vezes davam lugar às horas, e outras aos
segundos. Em breve os planos seriam postos em prática, despedir-me-ia de Ruben
e esperava que o amanhã acordasse onde o hoje acabara.
***
O tempo corria
apressadamente, como tal, não me foi permitido prolongar o delicioso banho de
imersão, onde a água quente me massajava as superfícies regeladas pelo frio do
Inverno. Com música ambiente, fiz largos caracóis no cabelo, apanhando-os superficialmente
de modo a caírem ao longo das costas, apenas a franja permanecia lisa
maioritariamente no lado direito do rosto. Espalhava a base escondendo as
pequenas imperfeições características da idade, apliquei uma ligeira
maquilhagem nos olhos, simples, um prolongado risco de eyeliner e com o rímel
alonguei as pestanas, dando-lhes um aspeto falso e, nos lábios um pouco de
gloss ligeiramente mais escuro do que a cor natural. Espalhei algumas gotas do
meu perfume preferido, e dirigi-me ao quarto onde, em cima da cama, me esperava
o vestido que iria levar em conjunto com uma pequena mala e os sapatos
oferecidos pelo Ruben pelo Natal.
Em meses tinha
mudado completamente, o meu estilo, a minha forma de falar, a minha aparência.
Há meses que decidira que estava na altura de deixar a atitude campestre e
crescer. Deixara as grandes camisolas, os ténis de sempre, o cabelo sempre
apanhado, o enorme casaco, que abotoava até ao pescoço. Aprendi a vestir-me e a
mostrar o que havia de melhor em mim. Hoje, adorava sentir-me bem vestida,
adorava a sensação de ser mulher, e mais do que isso, uma mulher apresentável,
que era alvo de olhares por parte do sexo oposto, não que me gostasse de
exibir, mas de certo modo eram elogios sem palavras. E para que neste dia a
sensação fosse mesmo essa, pendurei pequenos brincos de prata, assemelhados a
diamantes e, coloquei uma fina gargantilha também ela de prata. Estava pronta.
Esperei, em
frente à televisão, pela chegada de Maria, Joana e Sofia. Não demoraram muito.
Foi decidido que apenas levaríamos um carro, provavelmente, no final da noite,
nenhuma de nós estaria em condições para conduzir.
A adolescência
não tinha passado assim há tantos anos, todas nós tínhamos 21, como tal estas
jovens adultas ainda tinham brincadeiras muito parvas, mas sinceramente, muito
divertidas. Os vidros do carro estavam baixos, o frio da noite fazia-se sentir,
mas isso não nos impedia de aumentar o volume do rádio e de cantar qualquer
música que passava àquela hora. Eram estas pequenas parvoíces que faziam a
noite valer a pena.
- As minhas
boas estão prontas para a grande noite? – Perguntou Sofia, a gritar bem alto
para a noite.
- Prontíssimas!
– Afirmámos.
Na verdade, as
expetativas, para esta noite, eram altas.
***
O restaurante
onde iriamos jantar estava a abarrotar, no entanto a nossa mesa estava
reservada. Uma mesa para quatro pessoas, num ambiente iluminado pela fraca luz
vinda do interior do restaurante, através da grande parede de vidros enormes
que separava o interior da esplanada onde ficaríamos, e ainda, pela luz
proveniente da Lua, com uma vista deslumbrante sobre o Tejo e o Oceanário,
situado entre dois locais de referência ali, no Parque das Nações, o Pavilhão
Atlântico e o Pavilhão de Portugal.
Hoje tínhamos
direito a tudo, luxos que nos privávamos durante um ano inteiro, a universidade
não era, de todo, barata, e mais cara ficava a uma pessoa, como eu, estava a
cerca de 150 km de casa. O anfitrião, um jovem provavelmente com os seus 25
anos, recebeu-nos educadamente, ao qual Joana, mordendo o seu lábio inferior,
agitou as mãos perto da cara, como se estivesse com calor, sem que ele
percebesse. Realmente era bonito. Sentadas, o menu ia sendo servido. Desde as
entradas, os pratos principais, as sobremesas e os cocktails, estava tudo
ótimo. O jantar foi longo, porém, as nossas conversas permitiram que o tempo
passasse a correr. Estava na hora de nos entregarmos à vida noturna.
Percorremos
grande parte dos bares e discotecas que estavam abertos no recinto que tínhamos
escolhido. Independentemente da temática que apresentavam, a noite africana, festa
punk, rock n’ roll, do cadeado, entre outras, havia festas para todos os gostos
e todas elas estavam lotadas.
Ruben tinha
razão: “Quatro mulheres sozinhas… Essa noite promete”. De facto, não se
enganou. Homens solteiros, ou pelo menos aparentavam visto que estavam em
grupo, sem mulheres que mostrassem serem suas namoradas, com uma média de 23
anos, desejavam visivelmente juntar-se a nós. Alguns eram nossos conhecidos da
universidade, outros nunca os tínhamos visto. Nenhuma das meninas, aliás,
ninguém sabia da minha, agora mais do que uma amizade (dita normal), com o
Ruben, e era preferível assim. Por este motivo, delimitei um perímetro de
segurança, podíamos dançar, podíamos conversar, rir, mas ao contrário de Maria,
Joana e Sofia, o contacto físico mais intimo, as famosas curtes, eu não o
permitia.
- Madalena, o
Ruben não está aqui para ver. – Gracejou Maria, ao meu ouvido, num sussurro.
- E mesmo que
estivesse… O que foi? – Se queria que continuassem na ignorância tinha de lhes
transmitir a ideia que eramos apenas conhecidos.
- Nada, nada.
Mas estão aqui os melhores gatos da faculdade, teremos outra oportunidade?
- Vocês são
três. Tenho a certeza que são suficientes para acabar com eles. – Gracejei.
- Espero que
sim. Não queres, mais fica. – Deitou a língua de fora. – Oh Madalena, a sério?
Aqueles músculos, meu Deus!
- Não, obrigada
na mesma.
- O que são
para ti aqueles músculos, não é? Se quisesses podias ter bem melhor, os
músculos de um tal futebolista… Espera, como é que ele se chama? – Fingiu
pensar por um bocado. – Acho que já sei. É um tal de Ruben… Ruben Amorim, acho.
Lancei-lhe um
olhar de soslaio e continuei a dançar. Atitude que provocou um certo gozo em
Maria.
***
Faltava uma
hora para o início do novo ano, no meio da pista de dança não havia pares, no
entanto as minhas três companheiras mantinham-se bem perto do grupo de rapazes,
não que eu estivesse afastada delas, perto delas mas seguramente afastada das
mãos deles. Senti o meu telemóvel vibrar, o que me pareceu impossível no meio
daquela agitação, afastei-me do centro da pista e li a mensagem que tinha
recebido à segundos.
Dentro de meia hora estou ao meu lado.
Estás onde? Não ias passar na casa do Luisão?
E fui. Mas quero entrar em 2012 contigo. Só contigo.
Espero-te na Doca dos Olivais junto do Pavilhão de Portugal.
Sabes onde é?
Sei. Meia hora.
O local noturno
onde me encontrava estava relativamente perto do local escolhido por Ruben.
Tive tempo de me entregar novamente à pista de dança lotada. Teria de pensar
numa boa desculpa para abandonar o local sem que se apercebessem da minha
extrema felicidade, e claro, para não ficarem chateadas por não estar presente
conforme planeado.
A hora
aproximava-se. Peguei nas três meninas pelas mãos e afastei-as da pista pedindo,
gestualmente, um minuto aos rapazes que as acompanhavam.
- A que se deve
esta interrupção? – Perguntou Joana preocupada, pois poderiam eles virar-lhes
as costas e ir embora sem esperarem por elas.
- Eu tenho de
ir a um sítio.
- Vais onde Madalena?
Falta meia hora para a meia-noite. – Ripostou Sofia.
- Meninas
perguntem antes, vai ter com quem. – Maria olhava-me nos olhos, sabia o que
estava a pensar, para além disso, conhecia-me melhor do que ninguém, e com ela
não conseguia guardar segredos.
- Com o Ruben?
– Perguntaram as restantes, desconfiadas.
Baixei o olhar.
- O que é que
tens para nos contar? – Insistia Maria.
- Tenho a
dizer-vos que os vossos rapazes não param de olhar. Vão lá ter com eles antes
que se vão embora.
- Tu não te
escapas. – Disse Sofia, apontando-me o dedo.
Desejei-lhe um
bom ano e despedi-me.
Foi difícil
chegar à rua. A diferença de temperatura causou-me um arrepio que me percorreu
a coluna fazendo-me vacilar. Ruben já devia estar à minha espera, acelerei o
passo e fui ao seu encontro.
***
A lua
iluminava-o. Era impossível não conhecer aquela figura onde quer que fosse. De
camisa branca, calças escuras e ténis também eles brancos, esperava por mim, de
costas voltadas para a cidade apreciando o reflexo da lua nas águas do rio Tejo
que um pouco mais à frente se juntariam ao oceano. As suas mãos permaneciam nos
bolsos até ao momento em que retirou aquela que suportava o seu relógio de
pulso, provavelmente terá visto as horas, mas não a voltou a colocar no bolso.
Ao seu lado,
entrelacei os meus dedos nos seus. Voltou-se para mim, e num abraço
beijámo-nos. Cada beijo era sempre diferente dos anteriores, descobríamos novos
caminhos de cada um, as nossas línguas começavam a entrelaçar-se num bailado
calmo. O desejo, esse aumentava com o passar do tempo, os constrangimentos
ficavam para trás, o toque era sempre sentido como se fosse o primeiro. Alguma
vez conseguiria sentir a sua pele na minha, a sua respiração sem que o meu
coração não batesse tão forte ao ponto de quase sair do peito? Ao ponto de todo
o meu corpo estremecer?
- Estás linda.
– Elogiou-me Ruben, num sussurro.
- Estás tão
mentiroso.
- Não estou
não. És a mulher mais bonita que conheci, mas hoje... Estás particularmente… -
As palavras faltaram-lhe, e as minhas faces adquiriam um suave tom de vermelho.
- Pronto, está
bem, agora tenho a certeza que estás mesmo a mentir. Tu é que… - Deixei a frase
suspensa. Observei-o e mordi o lábio inferior.
Ruben colocou
aquele sorriso magnífico tão característico dele. Mesmo ali, sentámo-nos no
chão. Sentei-me entre as pernas de Ruben, enquanto este, me rodeava a cintura
com os seus braços, a minha cabeça aterrou no seu peito, assim podia ouvir os
seus batimentos, aquele som que me fazia sentir viva. Ficámos assim durante
largos minutos, em breve uma maior agitação se faria sentir.
- Madalena. –
Chamou-me, como tal, separei-me um pouco do seu corpo para poder olhá-lo.
- Sim?
O seu olhar
fixava o horizonte. Ruben estava pensativo.
- Eu tenho
pensado um pouco nisto e… - Ruben deixou a sua frase a meio quando o
fogo-de-artifício cobriu o céu escuro.
- Janeiro. –
Sussurrei. Sabia que Ruben não tinha ouvido.
Olhei para o
céu, embora aquele espetáculo tivesse durado pouco tempo, eu ficara
maravilhada. Ruben pousara o seu olhar em mim.
- Estavas a
dizer…
- Queria-te
perguntar… Tu queres ser… Bem, tu sabes… Minha namorada? – As palavras
saiam-lhe atabalhoadamente, a medo. Olhei-o sem expressão aparente.
Na verdade, não
esperava que Ruben quisesse oficializar tão cedo. Não que o que sentia por ele
não fosse o suficiente para começar uma relação, mas à bastante tempo que não
era comprometida, o facto de ele ser uma noticia nos meios de comunicação ainda
me deixava mais assustada.
«Janeiro».
Janeiro tinha
entrado, neste mês dar-se-ia a decisão de Ruben, ficar ou não ficar no Benfica?
Não podia permitir que uma relação fosse construída para que, em momentos, findasse. Tinha a noção que já me tinha entregado demasiado a Ruben, mais do que previra e, provavelmente sentiria as consequências em breve.
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